Sextou

Me bateu uma saudade de ser poeta
Então sexta-feira à noite não saí 
Liguei a melancolia para que a poesia
Habitasse um pouco mais aqui

O fiz pensando que seria possível
Reviver a inspiração de outrora
Saborear o amparo de gosto raro
Algo que a sensibilidade aflora

Me lembrei da música cuja letra
Bendiz a madrugada por ser dua
Assim tal é banido ao bandido
Retirar-se não pode o poeta da rua

Amálgama

Recolhida em uma perdida ilha
Ornada pelas conchas e algas
Beleza dual que compartilha
Escamas e pele em amálgama

Ressoou a canção nos ouvidos
Taciturnos do herói Odisseu
Afamado por planos atrevidos
Soube se safar melhor que eu

Amarrou-se para sobreviver
No mastro teve a eterna visão
Do que os cachos estão a reter

Insensível ao cantar da sereia
Não naufragou no mel da paixão
Sorvendo o mar que incendeia

Difração

O amor e o sexo são temas demasiado
recorrentes, cantados em prosa e verso.
Gozados, produzem casos controversos
Às vezes prendem, noutras tornam alados.

Satisfeitos os corpos após ápice prazer
Mentes se movem para lados opostos
O lume da alma dos seres justapostos
Separa-se ao no prisma do gozo bater.

Liberta da ilusão sai uma das partes
Outrora, embrigada pelo afã do desejo
Umedece o beijo num último lampêjo.

Compelida por uma febre terçã
Outra se vê num beco sem saída
Sozinha e sem ser correspondida.

Poliglota

Não temos a função de “desver”
Aquilo que nos afigura escarne
Bem assim que se decepcionou
y cortó el amor en la carne.

Lastimamos muito ao perceber
Lanhada a imagem da mulher
Apesar do que se entregou
Coupe l'amour dans la chair.

O que quer a mente reter
Salta à visão e nos mexe
Talvez nunca se apaixonou
And I cut love in the flesh.

Sonho

No meio da madrugada reaparece,
Para me paralisar em contemplação,
A memória que passa despercebida
Mas no subconsciente tem sua ação.

Se busco centrar no que me apetece,
Envaidecido por desfrutar em profusão,
Arrefece o desejo por quem comovida
Deixo para seguir minha maldição.

Acordo e a saudade desaparece
Mas fica a estranha sensação
De que esse meu estilo de vida
É  um prêmio de consolação.

Dúvida

Saltar de um lado ao outro da existência
Atrai olhares inquietos à procura de ajuda
Preocupados em alcançar lógica regular
Assustam-se com o que à vista transmuda

Ter para si um modelo fixo de aparência
Oferta a quem lhe julga a paz de buda
Esquece-se da complexidade que há:
Bonito contraste que à razão desiluda.

Equilibrar os opostos pode ser a muda
Refinadamente plantada e bem cuidada
Mormente para que tais desejo acuda

Usar de educação para vê-la desnuda
Deixa no ar do perfume uma dúvida
Afim, teimoso, visto sapato e bermuda

Contrariedade

Bem aventurado quem souber acolher
Esse mistério de devoção e liberdade,
Aglutinado no brilho do teu olhar,
Triturado quando ris para esconder

Réu desnaturado quem te quiser reter,
Inseguro sobre o critério da mocidade,
Zangar-se do brilho do teu olhar
Macular esse riso sem perceber.

Apaixonado ainda mais por saber:
Chegou a hora ir e, em contrariedade,
Honrar o brilho do teu olhar.

Apaziguado enfim resta torcer:
De novo em outra realidade
O universo lhe brilhe o teu olhar

Disponha

Karaokês dão a oportunidade de passar vergonha
Ao se escolher uma música cuja letra é desconhecida
Ressente-se tal cantor a cada olhar que lhe exponha
Instintivamente tende a fugir com a vaidade ferida

Nem sempre porém sabe de sua cantoria bisonha
Espera com essa conduta ter a atroz voz enaltecida
Aplauso pode advir pela confiança e como cegonha
Gerar força pra seguir em empreitada mal sucedida.

Consciente, diz a quem o aplaudiu: “disponha!”
Lindamente canta do público a canção preferida
Ofendida a plateia revela o aplauso com peçonha.