Lâmina

Rente a lâmina da água do longo lago, 
Arremessada para o outro lado voa 
Superando a gravidade uma pedrinha, 
Onde sabiamente não mergulha à toa. 

Moveu-me a esta questão que indago: 
É possível não se molhar sem ter canoa? 
Reverberar as ondas enquanto caminha 
Gabando-se pois ao raso não se afeiçoa.

Uma vez na margem oposta vem o estrago 
Lembrando da trajetória muito lhe magoa 
Haver sido impermeável e tão logo sozinha 
Obstante ser rocha, diz-se uma pedrinha boa

Solo

Despeço-me agora com grande pesar
Engendrando um esforço desmedido
Seguido do tremor do choro contido 
Precavendo mais terras não arrasar

Envelheço mais e mais ao provocar
Demasiada dor em coração querido
Irresponsavelmente não preterido
Na hora em que se podia amenizar

De certo terei de sempre ser sem par
O meu peito infértil qual um bandido 
Saqueia o amor de quem destemido
Enxerga nele um solo bom de cultivar

Entre

Os primeiros homens eram nômades
pois para sobreviver precisavam caçar
De suas casas eram apenas hóspedes,
O mundo afora o que chamavam de lar.

Até uma mulher sugerir ideia insólita
Não comer os grãos e lançá-los pelo ar.
A agricultura, até então uma incógnita,
Nasceu da desventura da fome afrontar 

E antes de se mostrar assim tão próspera
Houve quem pudesse não achar salutar
Julgando parecer  tal ideia impróbida 
Porque a sobrevivência ousava arriscar.

Em torno da coragem dela, a dúvida
Que há entre a semente e o pomar.
Cultivar é sempre uma tarefa rígida 
De com fé manter esforço regular.

Divã

Beldade conquistou mais um fã
Regalado pela forma em harmonia
Encantou-se também pois tão sã
Não cativara apenas pela alegoria

Descrente, ele prosseguiu seu afã
Aventurar-se nesse rio de poesia
Com papel e lápis, nosso titã
Aportou aonde não imaginaria

Receoso que aquela beleza vilã 
Viesse nele despertar tal agonia
Advertiu-se de imaginá-la ala islã.

Louvado, embora não fosse galã
Hospedou-a com imensa alegria
Ouvindo a diva em seu divã

Ministério da solidão

Morando nessas cidades tão lotadas,
Invisível pensa ser quem cuja ausência  
Não desperta furor nem é questionada
Insensível gira o mundo sem anuência 

Solitário chega o homem e lhe agrada
Tornar ver o bicho cuja a quintessência 
É amar o dono e ansiar sua chegada
Reconfortando-o sem julgar aparência 

Isolar-se vai o artista em sua jornada
Onde sua inspiração tome cadência 
De poder tocar outros quando entoada
Adulando o ego e matando a carência 

Satisfeito, pois com a alma apaziguada 
Observa o mundo com outras referências
Livre da necessidade do olhar da amada
Imerge-se na tranquilidade da demência 

Diante de tais circunstâncias foi criada
a pasta. Para quem só pede clemência:
O ministério da solidão será a morada.

Match

Com trilha sonora de filme de romance, 
O seu roteiro ensaia o mesmo final 
Liturgicamente feito para que avance 
Estimulando o que mais é  visceral

Com típicos carros de filme de ação, 
Íntima atmosfera longe do caos exterior,
O ambiente vai dissolvendo o não
Normalizado por quem tem pudor

Assistindo a esse filme de suspense
Distraído, o espectador até que desperte.
O mundo inverte-se para que então pense:
“Reconheci o colecionador de matches”

Sumira

Falando a um amigo sobre como me divertira
Ele me disse o quanto tudo aquilo iria mudar: 
“Recôndito à passagem dos ciclos, o balé lunar
nodula tatuagens invisíveis a quem nos mira”

Apreensivo pelo conselho que a paz sacudira
Neguei. Habituais prazeres não iria abandonar!
“Deixe de tolice, o que hoje é o conforto do lar
Amanhã incomoda até a visão e desperta a ira”

Insolente ignorei  o que a mensagem prevenira
Não ligando para o risco de amizades misturar,
Assisti à colorida fazer a de fato se opacar

Confuso é lembrar da amizade que sumira
Invés do amigo mais que perfeito abraçar 
Olho o pretérito mais que perfeito no lugar

Fome de brilhar

Seriam teus cabelos cortinas?
Entreabrindo as janelas da beleza
Ou brinquedos que enrolas nos dedos,
Fazendo girar as ideias que atinas. 

Temos de convir que há mistério
No mais puro feminino do teu ser,
De longe se nota e assim se quer
A admirada dama do magistério .

A luz confundida com humanidade
Que seu ar áureo nos compraz
Vem temperada de algo mais
Que despertara o pior n'algum rapaz.

Mas deixemos de lado os tolos,
Aqueles que não sabem lidar
Com a angústia do incontrolável,
O carnaval e sua fome de brilhar.

Besunto

Cabelos curtos em ti caem tão bem, que pergunto
a mim mesmo: será por conveniência ou estética,
mesclarem a beleza do olhar e sorriso em conjunto?
Idiocrasia minha é admirar esta mulher dialética.

Longe de mim reduzir-te a somente este assunto
Ainda mais fascinante és quando deveras cética
Ris das loucas cantadas com as quais lhe besunto,
E reclama que meu coração não tem tanta ética.

Gostaria de convencer-te de comigo ficar junto
Ignorando as mancadas dessa chama eclética
Não verter nosso relacionamento em defunto
Aliás, disseram que perdoar é a função poética

Fercondine

Faça uma playlist e entregue a quem deseja 
Escutando às músicas as ideias vão germinar 
Regadas pelas melodias  as sementes pelo ar 
Cairão na mente fazendo brotar o que almeja  

Obstante ao juízo perfeito do distraído ouvinte 
Nova trilha sonora preenche o velho ambiente 
Desta feita, é latente a influência do ausente   

Invitando reaver a amada, Oufeu utilizou da lira 
No Hades de hoje; porém, outra técnica nos resta 
Espetado o pen-drive, o cupido penetra a flecha  

Feitero

Feitio de feitiço prenunciava seu sobrenome
E com olhos infantis encantados pela mágica,
Instigado juntou à vontade de comer, a fome.
Testando o destino, pagou para ver onde iria
Embaçada visão de felicidade teve o homem
Riu-se até o momento em que acaba a alegria
O truque revelado é a magia que some.

Asco

Se o público segue seus desejos
Ouvindo quem lhes apara os medos,
E combina palavras com manejo,
Dando luz à germe vontade logo cedo;

É o discurso meio ou fim desse problema?
Se aos ouvidos, deleite e afago, ao coração;
A voz soa o que do íntimo do público é tema,
Entretanto,  o mesmo confuso diz que não.

Após satisfeito, pode revoltar-se com o porta-voz?
Quem fora desperto para uma alegria sem pudor
E com asco do próprio desejo, odiar o orador?

Metrô

A blusa dela mandava beijos ao redor,
Embora não houvesse beijado ninguém
Que notara em seu dorso as cem bocas,
O furtivo convite do ferroviário corredor.

Ia evitar seu olhar, mas encarou sereno
Por três segundos eternos foi levitado
Até que sobre suas alpercatas medievais
Ergueu-se para procurar outro terreno.

Sua mochila era um trançado de cores
Vivas saídas do peçonhento silvestre,
Cuja genética artesanal fez singular
Mas invisivel tornou-se nos corredores.

Por um triz

Grandes recompensas dependem das apostas
lançar-se no abismo da incerteza causa medo
Estremece o corpo de quem ignora seu destino
Inquietação típica que antecede o desenredo

Conter o elogio, não ser voluntário, deixar de ir
Eis o hábito que faz um estio de vida seguro
Segurando nos dedos da dúvida a felicidade
Aquela da qual jamais se saberá, o não futuro.

Neste mundo há quem pensa diferente,
Teimando em ser imprudentemente feliz,
Navega ciente de que o mundo é bom,
A vida, curta. E ela está por um triz.