Um caso

Ao que parece não podemos retroceder
Lograr êxito numa missão com atraso
Ignorar as linhas das mãos onde se lê
Nossos desencontros dados por acaso
E mesmo parecendo ser tão clichê
Sofro pela mania de amar a prazo
O ser que logo desaparece, por quê?
Usa a chama da fogueira que embraso
Zeloso, mas em seguida volta a chover
Assim que beijando, sugiro-lhe um caso.

Longo

Cadeiras daquelas que quase nos deitam
Junto a mesas pela calçada do botequim.
Sobreposta ao chuvoso tablado, a manequim
Calçada de salto, a cena que espreito:

O vestido sugere-a vinda de um casamento
Cuja permanência se amarrara como o longo.
Azul enfeite do feio relento, e pelo que sondo
É tal a sociedade, plano de fundo das relações.

Quem lhe trouxe a uma taberna como essa
Talvez tenha se inspirado no poeta Dante.
Do purgatório pelas estralas, fora avante
Guiado por Beatriz chegou ao paraíso.

Quase na metade

Hoje é dia treze de junho, terça-feira
Semana e ano estão quase na metade
Das divisões do tempo, para que a vida
Em doses homeopáticas nos dê idade.

Para quem está a viver no automático
O semestre apressou seu passo sutil
Rápido como o ponteiro dos segundos
Impressiona aquele que não lhe viu.

O Réveillon nem a sexta estão próximos
Há tão pouca ansiedade quanto euforia
Diversos planos já ficaram para trás
E os novos aguardarão mais três dias
.
As crianças confundem junho com julho
E quando adultas notam que tanto faz
Não fosse o comercio que nos alerta
O dia dos namorados seria um a mais.


Acha-se modo de contar o passar do ano
Através daquilo em que se está imerso
Uns em mulheres, outros em dinheiro
E eu vou contando através de versos.

Karaokês

Karaokês são populares, porém polêmicos
Tal a mulher feia que já ficou com tantos
Que lhe adoraram, mas não se declaram
Ao lazer que dos cínicos revela o cênico.

Propiciam o início de amizades improváveis
Pois há ali espaço para que a gente se goste
Gostando de música, gostemos mais da gente
E sejamos até com estranhos tão amáveis.

Os cadernos padronizadamente sujos
Da cerveja que entranha a plastificação
São cerne do dilema da próxima música
Um labirinto de páginas sem subterfúgios.

Quando em bares, há figuras estabelecidas
Cuja origem é sempre bastante misteriosa
Ainda assim não se pergunta de onde vieram
Pois ao cantar embalam tal toque de Midas.

Não é a perfeita harmonia que verte em ouro
o ambiente. Antes, tornam a memória valiosa
cantadas afinadas ou gritadas as canções
que de bons sentimentos são nascedouro.

Artista

Conversar é algo bastante comum
Que fazemos quase a todo momento 
Por isso ignoramos o quão complexo
É o processo para o entendimento. 

Dialogar é travar uma guerra de atenções 
E conseguir harmonizar tantas urgências: 
O impulso que o pensamento impõe à fala, 
O interlocutor que não utiliza reticências. 

Calar o pensamento, para comungar 
com o que se escuta, é importante 
Quando se busca a compreensão 
do que está a nos dizer o falante. 

A preguiça de ouvir atentamente 
Impede mais profunda interação 
E surdos uns e outros esperam 
Sua vez no monólogo sermão. 

Advertirá a mim o leitor mais crítico: 
“Quem não gosta de ser protagonista?” 
Digo que mesmo no palco o falador, 
É o bom ouvinte do show o artista.

Eusébio Ferreira

Ferreira, dono de um cavalo marrom
Em francês, em português: castanho.
Enfim, Ferreira tinha medo de que
Eusébio seguisse caminho estranho.
Ou seja, um que ele não conhecesse
Medo de que o bicho saísse da linha
Então, antes que isso acontecesse
Privou-lhe de ver o que vinha,
Colocando tapa nos seus olhos.
Anteolhos eram uma boa forma
Dele não se assustar, mas cego
Precisa ele de algo que lhe informa
o caminho por onde deve andar.
Para isso havia simples solução
Comprou cabrestos para contê-lo.
Agora, o destino estava em sua mão.
Mas Eusébio, malgrado ser curioso,
Limitava-se só à observação e a crítica
Portanto, com isso ficara pouco ditoso
Desgostoso da perda da visão holística.
Mesmo sem luz no fim do túnel, seguia
Os passos coordenados por Ferreira,
Que inexperiente no manejo do cabresto,
Jogava ambos em buraco e ribanceira
Até o triste dia em que o dono distraído
Fez o equino topar numa pedra rasteira
Quebrada sua perna, o mais dolorido
Foi ter que sacrificar Eusébio Ferreira.



Vizinhando

O momento mais romântico do shopping:
Emergem àquele andar todo tipo de gente,
Sobre os degraus que sobem e descem,
Flutuando no lombo do limbo transparente.

É viciante observar a movimentação:
A escada cospe pessoas de par em par
Muito difícil saber onde as deglutiu
E impossível, onde querem chegar.

Nas pernas em que se balançam
Mulheres são as mais impacientes
Pensam em suas listas de tarefas
Nas duras jornadas pós expediente.

Uns trazem sacolas, outros mochilas,
De certo mais leves que os pensamentos
Surgidos quando só é possível pensar
Pois a ação ali aguardará um momento.

O fim precípuo de um shopping center:
Comprar; ou melhor, vender, é bem inviavel
E até andar é difícil diante de tanta gente
Resta aos casais beijar, o gesto inevitável.

Vizinhando a saída desse formigueiro humano,
Um bar cujo nome é o gerúndio de vizinhar
Nele, ponho-me a tentar adivinhar o que passa
Nas mentes dos que ascendem a este patamar.

Míope

Um míope não chega a ser cego
Porém é convertido em analfabeto
Sem braile para montar seu lego.
Um conhecido fica muito irritado
Se acena para um míope na rua
E o mesmo lhe deixa desamparado
A luz para o míope maior aparece,
Difusa rouba o espaço da escuridão:
Uma cor engole a outra que padece.
A cidade embaçada é uma aquarela!
A tinta fresca das lâmpadas acesas
seca, quando a luz do sol as cancela




Olhos professores

Refletindo acerca do que forma um casal,
ouvi os mais diversos argumentos.
Baseando-se uns na sintonia espiritual,
enquanto outros destacavam sentimentos.

Recebi varias dicas para resolver a questão
tão simples aos olhos de quem já ama.
Ainda assim, faltava a tal da razão
preponderante entre cavalheiro e dama.

Eis que surgiram dois olhos multicores,
rasgando as dúvidas que me afligiam:
ensinavam-me esses olhos professores.

Imediatamente, tomei providência!
Risquei todos meus estudos e me expus
a crer no amor, da alegria, a quintessência.

A reciprocidade

A cautela vista nas relações atuais
reitera-se de distância e desconfiança
ensinadas por desilusões sentimentais.
Cada qual, então, cuida de sua segurança.

Imitam-se uns aos outros muito mais
pelas rusgas causadas, que pelas bonanças
recolhidas no auge desses encontros banais.
O mútuo interesse retrai e o tempo avança.

Chocados alguns imploram por sinais
indiscretos que possam inspirar confiança
de poderem se portar como meros mortais.

A valer muitos anseiam por uma aliança
de qualquer duração, mas de esquecer jamais:
é a reciprocidade que renova a esperança!

Malala

Maduro, um homem certa vez disse que deveriam proibir
a insensatez disso de mulheres bonitas serem inteligentes
Ledo seu engano de não saber que não há mulheres burras
A um simples olhar veem bem mais que eles, entrementes
Levadas por essa força: se erram, é por saberem demais
A demasia de luz cega como queima o sol quando rente.

Atestado de sorte.

A alegria dos que estão sempre tristes é intensa
Tanto quanto a tristeza daqueles que riem muito
É como se, havendo necessidade de compensação,
Saltassem de um extremo a outro da existência.

É quando a euforia abate seres taciturnos
Tacitamente tristes quando vistos no cotidiano
até explodirem como supernovas de felicidade
deixando no rosto um semblante diurno.

O contraste dessa guerra fria de humores
Desequilibra relações de trabalho e família
Esgotando reservas emocionais em um
Sinuoso convívio entre prazeres e dores.

O desafio é manter a paz de espírito
Rir-se e chorar quando preciso,
Real atestado de sorte e tenaz
Tarefa para uma vida em equilíbrio.